Para melhor compreender como era a vida a bordo das naus, nada melhor do que falar com alguém que está habituado às viagens de navegação.
Aqui está uma entrevista com um especialista na matéria: Gil Vaz, um português das Descobertas.
Reporter - É uma honra entrevistar alguém que viveu o seu dia-a-dia numa das naus das Descobertas. Falemos de embarcações...
Gil Vaz - As naus portuguesas da carreira da Índia eram, naquela época, os maiores navios do mundo. A nau Porto Seguro, onde embarquei pela última vez para a Índia, levava cerca de 800 pessoas.
R. - A partida devia ser emocionante!
G. V. - Era de facto, mas não partíamos do Terreiro do Paço, onde embarcávamos, mas de Belém. Durante dias esperávamos ventos favoráveis... O único motor que tínhamos era o velame e o único combustível, o ar.
R. - Os capitães deviam ser homens muito experientes nas coisas do mar!
G.V. - Nada disso! Os capitães muitas vezes não sabiam distinguir um astrolábio de um quadrante. Os problemas náuticos eram resolvidos pelo piloto.
R. - Fale-nos agora sobre a alimentação a bordo.
G.V. - Os alimentos transportados em viagem eram carne salgada, peixe seco ou salgado, arroz, presunto, biscoito (pão cozido várias vezes para ficar bem seco e durar mais), azeite, vinho, sal, vinagre (que servia como alimento, bebida, desinfetante para esfregar o barco e limpar as armas), frutos secos, alhos, cebola, farinha, açúcar, mel, conservas de doce e alguns animais vivos para se matarem pelo caminho, sem esquecer a água doce, o mantimento mais importante e indispensável... Depois, no fogão...
R. - No fogão?
G. V. - Sim, não havia cozinheiro a bordo. O que havia era uma grande caixa de terra barrenta sobre a qual se fazia lume de lenha. Cada um cozinhava para si, à exceção dos ricos que levavam criados ou escravos. As filas que se formavam diante do lume eram muitas vezes motivo de conflito. A alimentação dos passageiros era levada e administrada por eles próprios. A dos tripulantes, soldados e passageiros que viajavam por conta do Estado, era distribuída pelos despenseiros. Mas às vezes tudo isto faltava e a necessidade era tão grande que cheguei a ver familiares a agredir-se por um gafanhoto, besouro ou lagartixa, ou ainda a tentar comer a sola dos sapatos.
R. - E como passavam o tempo?
G. V. - Das mais variadas maneiras. Tantos homens juntos em tão pouco espaço e a maioria sem nada que fazer originava, por tudo e por nada, discussões, brigas e pancada. Havia pois que manter a disciplina e tentar arranjar ocupações. As cerimónias religiosas eram várias e com uma dupla finalidade: pedir a protecção divina e entreter os homens. Uma destas cerimónias era a procissão. Reuniam-se todos junto ao altar e daí formavam um cortejo que percorria todo o barco, entoando cânticos religiosos e rezando em coro. As leituras e o teatro eram também muito apetecidos. As touradas simuladas eram também um espectáculo bem agitado. As pescarias eram uma distracção útil, pois assim se obtinham alimentos frescos. Os marinheiros pescavam à linha, fazendo depois leilões do seu pescado.
R. - Enfim, na nau levava-se uma santa vida!
G. V. - Meus senhores, vê-se bem que nunca viveram uma calmaria no equador! E as doenças? Na primeira parte da viagem a doença mais vulgar era o enjoo. Na zona das calmarias tudo se complicava. O calor estragava os alimentos e a água ficava tão malcheirosa que era preciso tapar o nariz para a beber. Faltavam os alimentos frescos. Surgia então a pior das doenças a bordo - o escorbuto, que inchava as gengivas, os pés e as mãos, fazia apodrecer os dentes e dava um tão grande mal-estar que muitos não resistiam. E havia também outras epidemias graves, como a cólera e o paludismo; na zona dos frios, surgiam as gripes e as pneumonias. Logo que alguém adoecia, lá vinha o padre confessá-lo e o escrivão anotar as suas últimas vontades. Os cadáveres eram atirados ao mar. A higiene era nula. Nada de lavagens nem de banhos, pois havia que poupar a água doce. Sanitas não havia: ou se usava o porão para esses fins ou uma tábua furada e posta fora da amurada.
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