segunda-feira, 2 de abril de 2018

"ENTREVISTA" COM UM NAVEGADOR


Para melhor compreender como era a vida a bordo das naus, nada melhor do que falar com alguém que está habituado às viagens de navegação.
Aqui está uma entrevista com um especialista na matériaGil Vazum português das Descobertas.

Reporter É uma honra entrevistar alguém que viveu o seu dia-a-dia numa das naus das Descobertas. Falemos de embarcações...
Gil Vaz - As naus portuguesas da carreira da Índia eram, naquela época, os maiores navios do mundo. A nau Porto Seguro, onde embarquei pela última vez para a Índia, levava cerca de 800 pessoas.
R. - A partida devia ser emocionante!
G. V. - Era de facto, mas não partíamos do Terreiro do Paço, onde embarcávamos, mas de Belém. Durante dias esperávamos ventos favoráveis... O único motor que tínhamos era o velame e o único combustível, o ar.
R. - Os capitães deviam ser homens muito experientes nas coisas do mar!
G.V. - Nada disso! Os capitães muitas vezes não sabiam distinguir um astrolábio de um quadrante. Os problemas náuticos eram resolvidos pelo piloto.
R. - Fale-nos agora sobre a alimentação a bordo.
G.V. - Os alimentos transportados em viagem eram carne salgada, peixe seco ou salgado, arroz, presunto, biscoito (pão cozido várias vezes para ficar bem seco e durar mais), azeite, vinho, sal, vinagre (que servia como alimento, bebida, desinfetante para esfregar o barco e limpar as armas), frutos secos, alhos, cebola, farinha, açúcar, mel, conservas de doce e alguns animais vivos para se matarem pelo caminho, sem esquecer a água doce, o mantimento mais importante e indispensável... Depois, no fogão...
R. - No fogão?
G. V. - Sim, não havia cozinheiro a bordo. O que havia era uma grande caixa de terra barrenta sobre a qual se fazia lume de lenha. Cada um cozinhava para si, à exceção dos ricos que levavam criados ou escravos. As filas que se formavam diante do lume eram muitas vezes motivo de conflito. A alimentação dos passageiros era levada e administrada por eles próprios. A dos tripulantes, soldados e passageiros que viajavam por conta do Estado, era distribuída pelos despenseiros. Mas às vezes tudo isto faltava e a necessidade era tão grande que cheguei a ver familiares a agredir-se por um gafanhoto, besouro ou lagartixa, ou ainda a tentar comer a sola dos sapatos.
R. - E como passavam o tempo?
G. V. - Das mais variadas maneiras. Tantos homens juntos em tão pouco espaço e a maioria sem nada que fazer originava, por tudo e por nada, discussões, brigas e pancada. Havia pois que manter a disciplina e tentar arranjar ocupações. As cerimónias religiosas eram várias e com uma dupla finalidade: pedir a protecção divina e entreter os homens. Uma destas cerimónias era a procissão. Reuniam-se todos junto ao altar e daí formavam um cortejo que percorria todo o barco, entoando cânticos religiosos e rezando em coro. As leituras e o teatro eram também muito apetecidos. As touradas simuladas eram também um espectáculo bem agitado. As pescarias eram uma distracção útil, pois assim se obtinham alimentos frescos. Os marinheiros pescavam à linha, fazendo depois leilões do seu pescado.
R. - Enfim, na nau levava-se uma santa vida!
G. V. - Meus senhores, vê-se bem que nunca viveram uma calmaria no equador! E as doenças? Na primeira parte da viagem a doença mais vulgar era o enjoo. Na zona das calmarias tudo se complicava. O calor estragava os alimentos e a água ficava tão malcheirosa que era preciso tapar o nariz para a beber. Faltavam os alimentos frescos. Surgia então a pior das doenças a bordo - o escorbuto, que inchava as gengivas, os pés e as mãos, fazia apodrecer os dentes e dava um tão grande mal-estar que muitos não resistiam. E havia também outras epidemias graves, como a cólera e o paludismo; na zona dos frios, surgiam as gripes e as pneumonias. Logo que alguém adoecia, lá vinha o padre confessá-lo e o escrivão anotar as suas últimas vontades. Os cadáveres eram atirados ao mar. A higiene era nula. Nada de lavagens nem de banhos, pois havia que poupar a água doce. Sanitas não havia: ou se usava o porão para esses fins ou uma tábua furada e posta fora da amurada.

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